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Crédito: Vladimir Volodin/Shutterstock

Carolina Pezzoni, do Promenino, com Cidade Escola Aprendiz

Como todas as crianças xhosa, adquiri conhecimentos fazendo perguntas para satisfazer minha curiosidade enquanto cresci, aprendi com a experiência, observando os adultos e tentando imitar o que eles faziam. (Nelson Mandela)

Lembro-me da violência. Não uma violência secreta, hipócrita, aterrorizante, como a conhecida por todas as crianças que vivem no meio de uma guerra (…) Ogoja dava-me outra violência, real, às claras, que fazia vibrar meu corpo e era visível em todos os detalhes da vida e da natureza circundante. (Le Clézio, no livro “O Africano”)

“A criança perde com isso.” A afirmação permeia toda a argumentação do babalaô (sacerdote do Candomblé) Ivanir dos Santos, interlocutor da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR), enquanto reflete sobre os atentados de repercussão global que marcaram o início de 2015. Ao comentar, em entrevista ao Promenino, sobre o ataque à redação do jornal “Charlie Hebdo”, em Paris, e as ações do grupo terrorista Boko Haram, na Nigéria, que chega a usar crianças para atingir civis, ele ressalta dois temas que se sobressaem à debatida liberdade de expressão: o respeito às religiões e os impactos da intolerância na vida e na educação das crianças.

“A liberdade não pode criar vítimas. É preciso ter ética e responsabilidade. É um momento para a sociedade, não apenas no mundo, mas no Brasil, refletir sobre isso, porque cresce esse sentimento de intolerância religiosa, cresce o desrespeito à diversidade”, avalia. Em sua opinião, para haver uma sociedade democrática e livre, é preciso chegar à compreensão de que todos têm o direito de seguir seu caminho, “inclusive o de não seguir um caminho religioso”.

Atuação para a garantia dos direitos humanos
Em dezembro de 2014, a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR) ganhou o Prêmio Direitos Humanos 2014, na categoria Promoção e Respeito à Diversidade Religiosa, concedido pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR).

A Comissão foi criada em 2008, quando fieis de matrizes africanas foram expulsos de suas casas em uma comunidade na Ilha do Governador, na Zona Norte do Rio de Janeiro, por traficantes que se diziam convertidos a segmentos neopentecostais.

Centenas de pessoas se reuniram nas escadarias da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) para alertar as autoridades sobre o caso. Desde então, o grupo realiza a Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa, na Praia de Copacabana, sempre no terceiro domingo de setembro.

Segundo Ivanir dos Santos, a CCIR trabalha pela promoção do respeito entre os diferentes credos e tem como base a importância de uma sociedade de todos, incluindo os que não têm fé. “O Brasil é laico, e cada cidadão tem o direito de optar por qual caminho seguir. A Comissão acredita que não há um trilhar melhor, e que todas as opções devem ser respeitadas.”

Um exemplo das consequências da ausência dessa compreensão deu origem ao Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, celebrado em 21 de janeiro desde o ano de 2007. Criada no primeiro mandato do governo Lula, a partir de uma reivindicação do movimento negro e das religiões de matriz africana, a data homenageia a ialorixá (mãe de Santo) Gildásia dos Santos e Santos, que ficou conhecida como Mãe Gilda. Ela morreu no ano 2000, vítima de um AVC [Acidente Vascular Cerebral], após ver sua imagem divulgada sem autorização em uma matéria de conteúdo ofensivo no jornal evangélico “Folha Universal”.

Essa é uma data muito importante para nós, especialmente para as religiões de matriz africana”, explica Ivanir. Segundo ele, apesar de recente, a efeméride tem ganhado força no Brasil devido aos vários casos de intolerância religiosa que acontecem nos territórios nacional e internacional. Em 2014, por exemplo, o canal de denúncias Disque 100 registrou 149 situações de discriminação religiosa no país, sendo as principais vítimas de religiões como Candomblé e Umbanda.

Neste ano, para marcar o dia, haverá um ato público, chamado “Liberdade Religiosa, Liberdade de Expressão”, organizado pela CCIR em parceria com a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no Rio de Janeiro, para discutir esses dois direitos. “Um não está sob o outro. São dois direitos importantes, que exigem igual responsabilidade.”

No caso do ataque à publicação parisiense, o líder religioso é categórico: houve intolerância religiosa e ataque à liberdade de expressão. “Mesmo que eu não concorde com seus conteúdos [referindo-se ao “Charles Hebdo”], acreditamos que ninguém tem o direito de tomar uma atitude extremada como essa. Vítima é vítima. Há outras formas de promover o debate em sociedade, e é o que estamos fazendo aqui.”

Leia mais sobre o tema

Os Nagô e a Morte, Juana Elbein dos Santos
(Editora Vozes)
Trata-se de uma etnografia do universo iorubá, que apresenta sua concepção da morte e os rituais elaborados pelos descendentes de populações africanas que vivem no Brasil, mostrando em que medida a cultura africana influenciou o Ocidente.

O Africano, Le Clézio
(Editora Cosac & Naify)
Memórias do autor francês, que remontam à sua infância na Nigéria. Ao percorrer suas lembranças, ele refaz o percurso de reencontro com o pai, médico militar nas colônias inglesas, e com aquele território, “fonte dos meus sentimentos e de minhas determinações”.

Nelson Mandela: Conversas que Tive Comigo 
(Editora Rocco)
Com base no arquivo pessoal do líder africano, a obra traz trechos de cartas, rascunhos pessoais e recortes de jornais que Nelson Mandela reuniu durante os 27 anos em que esteve preso.

Respeito à infância

Quanto aos efeitos da intolerância na vida das crianças, Ivanir afirma que é um assunto preocupante, pois chega até às escolas. “É um problema que está dado hoje na sociedade. Há conflitos nas escolas de todo o país por conta da intolerância religiosa”, diz ele, citando o caso de um menino de 12 anos que foi vítima de discriminação na rede municipal no Rio de Janeiro por vestir guias (colares) de Candomblé. “Há problemas com a Festa Junina, com a Capoeira. Qualquer manifestação cultural em que você leve um atabaque [instrumento musical de percussão utilizado em rituais afro-brasileiros] está sujeita a ser demonizada.”

Como observa o babalaô, existe uma forte resistência por parte de algumas escolas à aplicação da Lei 10.639/2003, que tornou obrigatório o ensino da história e cultura africana e afro-brasileira. “Isso poderia ensinar as crianças a respeitar a diversidade que tem de ter o mundo, que não há ninguém superior ao outro em razões de compreensão de sua religião”, explica, lembrando ainda que o estado brasileiro é laico, ou seja, tem posição neutra no campo religioso.

Antes de tudo, segundo propõe Ivanir, é preciso abrir diálogo com as lideranças religiosas quanto às religiões que estão sob a sua responsabilidade. “O que estão ensinando em relação à democratização das culturas? Pregam o amor como princípio e reproduzem o ódio, o preconceito, a perseguição? A criança não nasce intolerante, ela se torna, a partir da educação que é lhe é transmitida”, observa. Por isso, ensinar “o respeito à diversidade, no lugar de afirmar um grupo religioso, é um papel da sociedade – da família, primeiramente, e também das entidades religiosas e da escola”.

Ivanir dos Santos destaca alguns aspectos religiosos relacionados ao Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa no que se refere às matrizes africanas. Para ele, “todas as religiões deveriam pregar o amor, o respeito, e não reproduzir o ódio, o preconceito e a perseguição”.

Ritos
“Toda cultura tem os seus ritos de passagem, que têm a ver com aprendizagem. Não é à toa que, quando uma pessoa é iniciada no Candomblé, por exemplo, tenha a idade que for, ela é como uma criança que acabou de nascer e tem de aprender tudo de novo, do ponto de vista dos relacionamentos, da alimentação, das responsabilidades… A passagem da infância para a adolescência é um rito, outro acontece na vida adulta, e assim por diante. Cada cultura tem os seus.”

Mandela
“Quando ele morreu, o que aconteceu? Um rezou para cá, outro rezou para lá, mas a tribo foi lá e fez o que tinha de fazer: cumpriu todos os ritos ancestrais da tribo. Quem fechou o caixão não foi o padre, nem o pastor, foi a tribo. Ao lado do caixão, tinha um menino, seu neto mais velho, que estava lá no papel de filho mais velho, pois este já morreu. Quando um homem não abre mão da sua cultura tribal, mesmo vivendo na cultura ocidental, ele é enterrado segundo a honra ancestral. Mandela é um belo exemplo. Como se pode viver em uma sociedade como a nossa, ocidental e cartesiana, uma cultura de ancestralidade?”

Infância
“No Candomblé, a criança não é um indivíduo sozinho e isolado do seu contexto familiar. Ela faz parte de um coletivo, de continuidade da ancestralidade da família. É essa a diferença primordial. Há as religiões cartesianas, nas quais se tem início e fim, já a cultura africana é circular. Por isso, desde pequena a criança é cuidada e participa de todas as tarefas importantes. Ela pode ser mais nova de idade e mais velha na religião. Tem autoridade, às vezes, sobre o adulto, pois pode ter nascido para a ancestralidade antes. Veja a diferença: não é o adulto que manda em tudo.”

Os impactos da intolerância religiosa na vida e na educação das crianças
Os impactos da intolerância religiosa na vida e na educação das crianças